segunda-feira, 27 de junho de 2005

Cântico Negro

Poemas que apetece seguir...

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "Vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "Vem por aqui!"?

Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "Vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

Cantico Negro, de José Régio

domingo, 26 de junho de 2005

Alvorada

Amanhece
Nas arvores de fronte
Pequenos passaros debicam
A imensidão do silêncio
Acompanham-me
Com trinados sentidos.
Lembro-me de ti...
Penso, se neste momento
Olhasses a lua
Estariamos os dois no mesmo quarto
Minguante.

Devolve-me a aurora
E a luz dos teus olhos.
A continuidade
De todos os ciclos da lua.
Deixa-me nascer e
Dar-te à luz
Ainda que reste,
Nestes gestos, sombra,
A infinita escuridão,
Que so a luz pode tragar.

Pouco, eu sei...
Pouco posso dar...
Por isso liberto-te
Abro as mãos -
Tuas asas de passaro...
Desfaço requebrando as promessas,
Para que sejas livre e
Passaro.
Há ainda, no entanto,
Neste amanhecer um sol
Que se erguerá...

by Ar, 26 de Junho, 05

sexta-feira, 24 de junho de 2005

No Momento

I

Eu não sou isto,
Este reflexo de mim propria.
A sombria mão sobre o pescoço,
Asfixia o lamento e
Transforma todo o corpo em mágoa...

Eu não sou esta lágrima
Que não escorre sobre a pele e
Permanece vaga no olhar que já não me pertence.
A chama estilhaçada pelo vento,
ausente sobre a vela fria.

Em que tempo adormeci?

Regressei para me acordar envelhecida e
Palida, de encontro ao espelho inexistente,
Na visão larga dos meus olhos exteriores
A este nevoeiro...
O reflexo incerto em que não me reflicto

Quem sou neste momento?

Eu não sou este reflexo
Do que sou...
O grito estridente
Deste cansaço.
Deste fracasso, que inaudivel
Me fica na garganta...


II

Calo o que sou.
Olho o refexo na esperança...
Vã, vaga esperança,
De enganar com ele
Isto que sou,
Mais falho ainda,
De maior engano.

Quebrei o espelho, inexistente,
Que ocultava a mentira.
Fragmentei-o,
Dilui-o no sangue dos dedos,
Misturei isto que era
Com o reflexo do que devia ser...
Cubri-o com a minha pele
E dele pouco ficou -
Um rastro...

Eu já não sou o reflexo
Dos anos penhorados
Apenas a nausea verdadeira e legitimas
Destes anos gastos...

by Ar 24 de Junho, 05

domingo, 19 de junho de 2005

Queria...

Queria...
Se deixasses amar-te
E fosses fiel na crença
Do amor...
Não permitiria
As mãos vazias,
Quando penso assim,
Antes de recordar
Que queria amar-te
Se fosse quem tu querias...

by Ar 30 de Maio, 05

Ansia de Letra

As letras acalmam-me,
O gesto
Praticado em horror, expectante.
O opium de sangue,
Escarnecendo,
Um vicio velho
Uma salvação ingrata...

Modulo letras...
Vaga tentativa,
Afastar, de mim,
A mão cruel,
Que puxa,
Repuxa os cabelos.

Cedo no tempo
Instantes que não chegam,
Formo frases,
Frenéticas
Formas ansiosas
De encontrar,
Possivel fuga,
Uma possibilidade de fuga...

O meu carrasco ama-me!
Atira-me de encontro arestas
Acutilantes,
De encontro à rasura dos versos.
Pega-me na mão,
Usa-a como caneta
E a alma feita tinta
Espalha-se
Sobre o papel pardo...

Quando olho,
A alma gastou-se,
O tempo tragou o papel.
Feita em pedaços,
A vida quebrou-se,
Estilhaçada,
Dolorosa, corroeu quem a continha.

Nos caixões
Morada de corpos despidos
De alma
De corpos envolucro
Vazios de animo.
Já não se amortalham, os mortos,
Moram nos caixões...

Hoje,
Uso ainda viva
A mortalha do meu corpo morto.
Esta forma exangue
De alma embrutecida,
Extinta
Pelo inverno que chegou e
Apagou a chama.

by Ar, 30 de Maio, 05

sábado, 18 de junho de 2005

Por Baixo da Pele, o Anjo...

para Carla, e outros anjos...

Sobre o solo, o anjo abateu-se
Em estrondo e explosão.
As asas esmoreceram,
Fragilizou-se o corpo
Que a alma eterna seguiu.

Quando hoje olham o anjo
Vêm os escombros e os restos,
Vêm o rosto entristecido que abandonou as mãos
E o sorriso vencido pelo desastre da queda
Sem culpa, solitária e triste.

Acusam o anjo, de ser humano e anjo...
Temem a fragilidade de serem humanos
Quando olham o anjo...
Tão facil desviar os olhos do que pode espelhar...
Tão fácil abrir caminho por entre a ilusão.

Mas de baixo da pele de anjo
Ergue-se a vontade de dar brilho às asas e
Estende-las de novo, voar...
Por dentro da carne, outras mãos movem-se lentas, subtieis
Há coragem e força no anjo!

Quando olho o anjo assim abatido,
Percebo-lhe o voo a nascer
Como passos frageis, ensaiados, de criança
E o sorriso de cansaço a substituir-se pelo dos herois,
Que só o sabem ser erguendo-se a si proprios do solo.

by Ar 18 de Julho, 05

sexta-feira, 17 de junho de 2005

Tinta

ao lobo audaz

Por entre brumas,
Esquecer...
A linearidade de todos os caminhos.
Sonhei que vinhas.
Estava acordada
Por baixo da pele,
Acordada
Por baixo de qualquer mascara latente...

Oculto-me dentro da pele que não sou.
Fechar na mão uma vez mais
Esse reconhecer incerto,
A misteriosa vacuidade
Onde sempre revejo a sombra antiga.
O corpo por baixo da pele
É feito de mar e maresia,
Da insubstancia das flores flutuantes,
Da noite encrepusculecida,
A serenidade tranquila de todas as tempestades
E o calar de segredos obscuros,
Murmurios que o tempo não apagará.

Amordaço
No meu corpo
O corpo teu, de quimera.
A pele translucida
Que usas sobre a pele lucida.
Nevoeiro dos meus sonhos,
Penumbra das minhas ilusões abandonadas...
Vem, fazer da noite
Uma suprema eternidade, e da Lua
Um astro estelar, fulminante, que
Encadeie
Até à ausência do tempo.
Luz apenas...

Percorreremos, então,
Os becos e vielas dos corpos
Soltos nas amarras,
Possuidos, no uivo incessante da noite
Acolhedora.
Deixa-te ficar
Na ausencia dos silencios funebres,
Na incapacidade do jogo da tristeza.
Vaga tristeza,
Quando o corpo
Em queda languida
Se abate na lentidão da alma,
No suspiro indefinido
Sem saber acabar...
De mãos na pele

Pequena fronteira que o toque desfaz
Juntos, os dedos
Recuperam a noite,
Reclamam para o corpo unico
As estrelas dos amantes...
Ainda há constelações no céu.
Um murmurio
Roçando a sombra da pele e da carne...
Deixa que olhe,
De olhos fechados ao que rodeia,
Por baixo da pele
Fimbria fronteira,
Quem somos, quem aparentamos...

Debaixo da carne,
Estrutura,
Esqueleto ensurdecedor
Do grito voraz
Pela poeira inolvidavel do mundo.
Deixa que recuse a vida, que
Recupere depois a vida
Um novo mar intranquilo, revolto e
Quente,
Mar de retorno...
Deixa que morra sempre, nos teus abraços
E nos braços
Renascer...

Suave e lenta parte de parte
Eu deixo-te
Crescer por dentro de mim,
Intranquilo delirio,
Apertando-te o corpo em revolução
Nesta miragem...
Que espreite entre os dedos
Cobrindo de memoria o rosto...
Deixa em memoria
A ousadia desta doce loucura,
Penetrar-te o corpo, profana,
Libertar-te apenas quando fosse dia
Nesta noite construida sem tempo...

E ao acordar
Ficarás como brisa nocturna
Aquecendo a nudez dos corpos gastos
Quebrados,
Olhares de indefinidas conversas
Na utopia do tempo, uivante
Ser
Na liberdade traçada a pincel
Com tinta de ilusão.


by Ar, 28 de Maio, 05